"În caz de incendiu", já sabe
Por João Lopes Marques*
Uma invulgar cumplicidade (latina) une a Roménia a Portugal. Idiomas bem diferentes, sem dúvida — mas com algumas frases demasiado semelhantes. Os mais talentosos conseguirão juntar umas 30 palavritas portuguesas que farão pleno sentido juntas. Enfim, ideal para os adeptos do very nice…
Talvez seja um clássico para os amantes do Conde Drácula, Bram Stoker e demais sugadores de sangue. Mas aqui segue novamente: se descontarmos as placas do Grupo Lena e MSF na berma da estrada, uma das primeiras palavras em que uma sensível alma viriata tropeça mal aterra na Roménia é… portucala. E se no cimo deste derradeiro “a” acrescentarmos um estranho sinal em forma de meia-lua tombada — símbolo que escapa a este lusocêntrico teclado —, pronunciá-la-emos então “portucália”.
Muito bem. O resto é uma questão de minutos. Os mais curiosos rapidamente notarão que a tão familiar “portucália” designa nem mais nem menos do que um colorido fruto chamado “laranja”. Quanto a “Portugal”, o país propriamente dito, é mesmo Portugalia — como a bem-amada cervejaria da Pascoal de Melo, dispensando todavia acento agudo no “a”.
Claro que nesta noite de pesadelo tamanha cumplicidade latina jamais passaria despercebida a Nicolae. O recepcionista do Hanul Manuc — simpática unidade hoteleira no centro de Bucareste — é adepto ferrenho do Steaua. Só podia. Pior é que transmitem a eliminatória contra o Lyon no preciso momento em que faço o meu check-in. O encorpado Nicolae não desaproveita tal oportunidade para vingar frustrações; disparará sem misericórdias: “Espere aí, disse-me você que vinha de Portugal… Conhece o Carlos? O Carlos-guarda-redes?”
Parece que Portugal é mesmo conhecido pelos frangos, e não só os que levam piri-piri. Bom, lá lhe fiz perceber que em matéria de guarda-redes não vou muito além de Ricardo ou Vítor Baía. “Carlos? Vagamente, muito vagamente…”, contestarei. Confesso não perceber aonde Nicolae pretende chegar, pelo que o meu descomprometimento é tácito. Lá me orientará o quartito single a que tenho direito e onde em muito boa hora comprovarei ser mesmo a Roménia o tal país latino que se queixa de flutuar num oceano eslavo.
A telenovela da Zona Romántica é hoje venezuelana, um desses admiráveis culebrones: “Yo no soy parte de esa película, porque voy a enfrentar mi papa! Voy a desposar Rosarito!” Assim seja, Rafael. Dá-lhe com a alma! Minutos mais tarde, o noticiário levanta-me a pálpebra: “Viktor Iuschenko care a contestat rezultatele si a conduz Revolutia Portocalie.” Como? Houve uma revolução em Portugal? Outra? Cavaco Silva defenestrado? Sócrates exilado? Só mesmo as imagens em directo de Kiev dissiparão a confusão — este portocalie é traduzível para “cor-de-laranja”.
Evidente que o mote para a insónia estava dado. Sobretudo por me virem à mente aquelas piadas ancestrais, uma certa frase ressonante da minha pequena infância: “João, sabias que em romeno ‘Cu carne de vaca nu se moare de foame’ significa exactamente o mesmo que ‘Com carne de vaca não se morre de fome’?” A pronúncia, essa, nem sequer muda; se quisermos caprichar, amaciemos apenas os erres.
São nove palavritas seguidas que resultam num belíssimo very nice. Pois decidi que nessa semana de Bucareste o iria repetir à exaustão. Tem piada ver o mais fleumático dos romenos a arregalar os olhos; e até o próprio Nicolae engolirá todos os franguitos do Carlitos ali mesmo à minha frente.
O problema é que estas larachas provocam vício. Alienam. Damos connosco a elevar a fasquia. Haverá alguma frase mais longa do que “Cu carne de vaca nu se moare de foame”? Conseguiremos impressionar o mais circunspecto dos romenos? A obsessão cresce a cada minuto. Devoro revistas, digiro telejornais (com e sem a trança da Timoschenko), faço algumas experiências. Nada. Mas é que nada mesmo: por muito que nos esforcemos, o romeno fica mais longe do português do que gostaríamos.
Contudo, um daqueles acasos faz-me ganhar o dia. No corredor do Hanul Manuc, um enorme letreiro dispõe: “În caz de incendiu.” Sem prestar atenção ao plano de evacuação dependurado no hall, releio: “În caz de incendiu.” A fonética embala-me enquanto tranco a porta, parece que é mesmo verdade: “Em caso de incêndio.” Daí que a soma ocorra tão célere quanto espontaneamente: “În caz de incendiu, cu carne de vaca nu se moare de foame.”
O meu espírito rejubila no elevador. Ajeito o colarinho da camisa, passo a mão pela melena e ainda repito a bela frase quatro vezes diante do minúsculo espelho. Com redobrado cuidado na dicção, é óbvio: “Em caso de incêndio, com carne de vaca não se morre de fome.” Mais uma vez: “Em caso de incêndio, com carne de vaca não se morre de fome.” É que ainda por cima faz todo o sentido. Acho que Nicolae vai gostar.
Claro que o Nicoale gostou. Dá-me uma palmada nas costas, sim, com este corpanzil já deve ter mesmo digerido todos os churrascos do Carlos. Repito a piadola “În caz de incendiu, cu carne de vaca nu se moare de foame” e ele vai serenando. Perfeito. Mais umas palavras na oração e quase seremos amigos. Já agora, vinte por cento de desconto também vinham a calhar, amigo.
Caramba, “vinte por cento”? E porque não? “Speranta moare ultima.”
* Crónica publicada originalmente na revista "Volta ao Mundo".
Uma invulgar cumplicidade (latina) une a Roménia a Portugal. Idiomas bem diferentes, sem dúvida — mas com algumas frases demasiado semelhantes. Os mais talentosos conseguirão juntar umas 30 palavritas portuguesas que farão pleno sentido juntas. Enfim, ideal para os adeptos do very nice…
Talvez seja um clássico para os amantes do Conde Drácula, Bram Stoker e demais sugadores de sangue. Mas aqui segue novamente: se descontarmos as placas do Grupo Lena e MSF na berma da estrada, uma das primeiras palavras em que uma sensível alma viriata tropeça mal aterra na Roménia é… portucala. E se no cimo deste derradeiro “a” acrescentarmos um estranho sinal em forma de meia-lua tombada — símbolo que escapa a este lusocêntrico teclado —, pronunciá-la-emos então “portucália”.
Muito bem. O resto é uma questão de minutos. Os mais curiosos rapidamente notarão que a tão familiar “portucália” designa nem mais nem menos do que um colorido fruto chamado “laranja”. Quanto a “Portugal”, o país propriamente dito, é mesmo Portugalia — como a bem-amada cervejaria da Pascoal de Melo, dispensando todavia acento agudo no “a”.
Claro que nesta noite de pesadelo tamanha cumplicidade latina jamais passaria despercebida a Nicolae. O recepcionista do Hanul Manuc — simpática unidade hoteleira no centro de Bucareste — é adepto ferrenho do Steaua. Só podia. Pior é que transmitem a eliminatória contra o Lyon no preciso momento em que faço o meu check-in. O encorpado Nicolae não desaproveita tal oportunidade para vingar frustrações; disparará sem misericórdias: “Espere aí, disse-me você que vinha de Portugal… Conhece o Carlos? O Carlos-guarda-redes?”
Parece que Portugal é mesmo conhecido pelos frangos, e não só os que levam piri-piri. Bom, lá lhe fiz perceber que em matéria de guarda-redes não vou muito além de Ricardo ou Vítor Baía. “Carlos? Vagamente, muito vagamente…”, contestarei. Confesso não perceber aonde Nicolae pretende chegar, pelo que o meu descomprometimento é tácito. Lá me orientará o quartito single a que tenho direito e onde em muito boa hora comprovarei ser mesmo a Roménia o tal país latino que se queixa de flutuar num oceano eslavo.
A telenovela da Zona Romántica é hoje venezuelana, um desses admiráveis culebrones: “Yo no soy parte de esa película, porque voy a enfrentar mi papa! Voy a desposar Rosarito!” Assim seja, Rafael. Dá-lhe com a alma! Minutos mais tarde, o noticiário levanta-me a pálpebra: “Viktor Iuschenko care a contestat rezultatele si a conduz Revolutia Portocalie.” Como? Houve uma revolução em Portugal? Outra? Cavaco Silva defenestrado? Sócrates exilado? Só mesmo as imagens em directo de Kiev dissiparão a confusão — este portocalie é traduzível para “cor-de-laranja”.
Evidente que o mote para a insónia estava dado. Sobretudo por me virem à mente aquelas piadas ancestrais, uma certa frase ressonante da minha pequena infância: “João, sabias que em romeno ‘Cu carne de vaca nu se moare de foame’ significa exactamente o mesmo que ‘Com carne de vaca não se morre de fome’?” A pronúncia, essa, nem sequer muda; se quisermos caprichar, amaciemos apenas os erres.
São nove palavritas seguidas que resultam num belíssimo very nice. Pois decidi que nessa semana de Bucareste o iria repetir à exaustão. Tem piada ver o mais fleumático dos romenos a arregalar os olhos; e até o próprio Nicolae engolirá todos os franguitos do Carlitos ali mesmo à minha frente.
O problema é que estas larachas provocam vício. Alienam. Damos connosco a elevar a fasquia. Haverá alguma frase mais longa do que “Cu carne de vaca nu se moare de foame”? Conseguiremos impressionar o mais circunspecto dos romenos? A obsessão cresce a cada minuto. Devoro revistas, digiro telejornais (com e sem a trança da Timoschenko), faço algumas experiências. Nada. Mas é que nada mesmo: por muito que nos esforcemos, o romeno fica mais longe do português do que gostaríamos.
Contudo, um daqueles acasos faz-me ganhar o dia. No corredor do Hanul Manuc, um enorme letreiro dispõe: “În caz de incendiu.” Sem prestar atenção ao plano de evacuação dependurado no hall, releio: “În caz de incendiu.” A fonética embala-me enquanto tranco a porta, parece que é mesmo verdade: “Em caso de incêndio.” Daí que a soma ocorra tão célere quanto espontaneamente: “În caz de incendiu, cu carne de vaca nu se moare de foame.”
O meu espírito rejubila no elevador. Ajeito o colarinho da camisa, passo a mão pela melena e ainda repito a bela frase quatro vezes diante do minúsculo espelho. Com redobrado cuidado na dicção, é óbvio: “Em caso de incêndio, com carne de vaca não se morre de fome.” Mais uma vez: “Em caso de incêndio, com carne de vaca não se morre de fome.” É que ainda por cima faz todo o sentido. Acho que Nicolae vai gostar.
Claro que o Nicoale gostou. Dá-me uma palmada nas costas, sim, com este corpanzil já deve ter mesmo digerido todos os churrascos do Carlos. Repito a piadola “În caz de incendiu, cu carne de vaca nu se moare de foame” e ele vai serenando. Perfeito. Mais umas palavras na oração e quase seremos amigos. Já agora, vinte por cento de desconto também vinham a calhar, amigo.
Caramba, “vinte por cento”? E porque não? “Speranta moare ultima.”
* Crónica publicada originalmente na revista "Volta ao Mundo".
Comentários
Estou casada com um romeno e ainda hoje encontramos piadas escondidas e fabricadas pelas duas línguas.
Espero que a Roménia tenha sido uma experiência bonita!
:-)
-"uma sensível alma viriata"..lindo..digno do Fernando Pessoa.
-E o que dizer do "pronunciá-la-emos"?? esta me deixou por terra...arrasou..;)
Muito bom.
Palavra boa
Não de fazer literatura, palavra
Mas de habitar
Fundo
O coração do pensamento, palavra
Chico