Húmus

 

Decidi visitar Belém em 2006. Não a que confina com Algés, a outra, hoje absolutamente muralhada na Cisjordânia. Recordo-me de uma estranha densidade de pessoas, pior só talvez mesmo Macau, bandeiras da cooperação norueguesa, demasiadas fotos de mártires de kalash em riste. Em rigor, visitar a gruta onde Jesus Cristo alegadamente terá nascido foi razoavelmente deprimente e sem direito nem ao burro nem à vaquinha com os seus bafos aconchegantes. Por Belém ficámos umas horas, sempre altamente vigiados pelo IDF, adoro o eufemismo, que a partir das suas altas torres tudo observavam. A quantidade de crianças foi o que mais me marcou. A experiência foi bem intensa mas ficou arrumada durante quase duas décadas numa pequena gavetinha — é óbvio que o deboche e cosmopolitismo fino das noites de Telavive se sobrepõe sempre quando de um hedonista encartado, o mesmo que vos escreve estas linhas, falamos. Não sou religioso, embora tenha um certo culto — quiçá semi-fantasioso, seguramente místico — pelo Jesus Cristo histórico e respectiva alteridade que terá mudado o mundo da época e a forma como os indivíduos se encaravam uns aos outros. Pois o tempo passou. Em Julho de 2023, e após um épico lanche com o meu filho Jonas na Pastelaria Nicola, em pleno Rossio, não longe da Belém de pechisbeque, tropeçámos em duas, três, quatro dezenas de "comitivas" de peregrinos que participavam nas lisboetas "JMJ". Romeiros também poderiam ser. Ou o que lhes quiserem chamar. Serpenteámos o largo, tecnicamente apodado "Praça Dom Pedro IV" (esqueçam agora a estátua trocada do Imperador Maximiliano do México, o molde era parecido) e, já quando me aprestava a puxar o meu Joninhas no sentido dos Restauradores, o menino estava em transe, vociferando paralisado: "Papá, aqueles senhores ofereceram-me isto..." Percebi que havia sido uma oferenda de uma dúzia de peregrinos vindos da Palestina, cuja bandeira reconheci e com quem havia, com efeito, trocado na passada algumas avulsas palavras. Marcelo teria feito o mesmo, mas esse vive mesmo no breu de uma gruta em Belém. A verdade é que o meu Joninhas não sabia sequer a utilidade do objecto, porventura decorativa. O conceito de arte sacra não lhe é totalmente alheio, adora Cristiano. O regresso à Estónia seria na madrugada seguinte e o moço, após inquirido, convenceu este pai a dependurar o tosco terço palestino no mapa-mundi do seu quarto lisboeta. E ei-lo, lá está, imune ao terrorismo do Hamas, às atrocidades das supracitadas IDF. Ontem, a seguir ao jantar, questionei-me novamente se aqueles moços estão bem. E o que aquela rapaziada carinhosa e sorridente, que do nada abençoou o meu querido Jonas — e que lhe ofereceu uma poderosa memória da vida, do papá, da cidade do papá, do mundo, da civilização, do amanhã — tinha ou tem que ver com o Hamas. 

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